Pela janela contos se fazem visíveis, por Carlos Mendonça

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O encontro com o Janela de Dramaturgia trouxe a baila uma pergunta que me é velha companheira: em que medida é possível vislumbrar na dramaturgia contemporânea uma oportunidade para os sujeitos escaparem dos liames da experiência depauperada? O tempo de permanência da questão nada tem a ver como sua impossibilidade de resposta. Pelo contrário, ela permanece porque mostra a possibilidade de respostas multifacetadas. Ao me deter mais atentamente aos textos “A menina de lá” e “Risco”, escolho, nesta galeria de possíveis, o corredor reflexivo que permite agrupar os dois textos sob uma dentre suas qualidades estéticas: o ato narrativo.

 

Estas qualidades são pontos de passagem nas conexões entre os objetos estéticos e os espectadores, são condições para uma experiência estética. Penso, a esta altura, na tarefa assumida por Raysner de Paula, Eduardo Moreira, Luísa Bahia e Ricardo Alves Jr.: criar um ato narrativo atrator de forças. Uma cena que não seja forma, os contornos de um pretérito representado; mas ato, local de onde procedem forças capazes de mover a sensação, os afetos. Este afeto é distinto da emoção. A emoção é individual. O afeto é um fluxo impessoal, pré-individual, existente antes de nos tornarmos indivíduos.

 

Em “A menina de lá” e em “Risco”,  o ato narrativo delimita a leitura como objeto estético que congrega, sem primazias, a palavra e a ação. Para aqueles que ouvem, a performance do corpo que lê torna visível o imaginado pelo corpo que escreveu. O corpo em cena, ao mesmo tempo, capta e distribui forças. O corpo que vê transforma estas forças corpóreas, estes afetos, em conteúdos subjetivos e oferece novas forças ao outro.

 

Um objeto, a respiração, o tom da voz, o movimento ou a fixidez do corpo. Corpo, qual corpo? Corpo que agora é boca, ora é gesto, depois expressão, um tempo mediação. Corpo em partilha. Não é o corpo de Eduardo ou as palavras de Raysner, os gestos de Luísa ou as imagens de Ricardo. Corpo feito texto. Um texto ampliado para além das linguagens oral ou escrita. Musculatura significada, tornada frações de sentido, fragmentos da memória, restos de imagens e sobras de afetos. Não se trata simplesmente da passagem do vivido de um lugar ao outro e sim do exercício praticado, como nominou Antonin Artaud, pelo corpo afetivo que existe em paralelo ao corpo orgânico do ator. É o lugar do jogo e da inspiração, espaço de encontro onde a experiência toma fôlego. Seja a escrita Mallarmé de Raysner ou o jorro textual de Luísa, as leituras ofereceram a oportunidade do enlace entre sensações desconhecidas. Cenas que não querem representar a vida, querem ser vividas. Elas se fazem ali, no tempo presente, precisam de todas aquelas forças. Cenas acontecimento.

 

Janela aberta para aos narradores.

 

No espaço, estes seres em ato estavam divididos, por uma lógica meramente hierárquica, em atuante e espectador. E, sob os arcos da experiência do comum, foram agrupados como tecelões das tramas palavra/corpo/imagem. O semiólogo francês Roland Barthes lembrou que texto quer dizer tecido. Porém, esse tecido não é um produto acabado. Essa tessitura se faz num “entrelaçamento perpétuo”, uma trama na qual os sujeitos se desfazem. Durante o bate-papo, dizia Nina Caetano: “no texto de Luísa o autor se mistura à ‘personagem’ (leitora)”. Eu que se torna outro. Somos transformados juntos.

 

Corpos, objetos da cena, uma paisagem sonora, um quadro projetado na parede, sombras, luz: sob o véu do texto se faz a dramaturgia criadora de afetos. Ao descortinar o véu, o corpo que lê oferece as passagens, as curvas por onde derrapam as lembranças. As palavras em jorro de Luísa são como um rio turvo. No meio das águas escuras se reconhecem algumas sombras, aquilo que me faz lembrar um “não sei o quê”, uma imagem desfocada na memória, mas com forte presença no meu corpo. Eu sei que é um rio, percebo o rio e a forças das águas. Entretanto, me é impossível definir o rio, me resta, então, sentir o rio.

 

Dora faz contas. Tem tarefas, tem tempo marcado. As marcas são de um tempo próprio que se faz enquanto é contado. Tempo de narrar.

 

“- Deixa? Deus? Deixa ser amanhã? Deixa ser amanhã. As pessoas batem palmas. Deixa ser amanhã, aí agora vem evaporar. Deixa ser amanhã o desafio do dia, deixa! Eu vou estar melhor preparada! Mais bem. “O tempo é um ditador, o tempo é um ditador”. Amanhã, eu juro, eu juro. 13 de 14. De 14? Não! A vida não tem página extra! Eu Juro que amanhã a tartaruga deba…”

 

A Helena, de Raysner, se parece com a Alice, de Lewis Carroll. Gilles Deleuze encontrava na história de Alice a metáfora para ilustrar o devir louco. Tal como Alice, Helena cresce e encolhe para caber, para passar, para tornar-se. Raysner cuida da escolha das palavras, se preocupa com os sentidos delas. Dessas escolhas vem o encontro consonantal que dita tempo: prólogos, prólogo, prólogo. Consoantes pronunciadas como uma pausa explosiva. Se no país das maravilhas o som do relógio do coelho é um tic-tac-tic-tac constante, o tempo em  Raysner é marcado pro-pausa-pro-pausa espiralado. Prólogo, centro da espiral. E tudo recomeça. Outro recomeço. A volta ao início. As personagens permanecem, mas a história ganha um pouco mais de caso a cada vez que é contada. Vai e volta. Ao modo de Helena/Alice, o texto cresce e encolhe. O tempo não pertence, desconhece propriedade. É distinto, na qualidade e na apresentação. Ainda que sejam similares, os tempos narrados não se comparam aos nossos.

 

“Porque tudo que é dito

Tudo que é grito

Não tem jeito!

Uma hora se cala.”

 

Nas duas narrativas, a invocação do absurdo fratura os limites da semelhança. As leituras desinvestem na identificação, para concentrar-se no “vir-a-ser”.

 

Um ator, do lugar onde tudo pode vir-a-ser, contempla os que vieram.

(Epígrafe de “A menina de lá”)

 

A abertura para um “vir-a-ser”, a condução conjunta a um “tornar-se”, o tempo fraturado posicionam, de um modo interessante, “A menina de lá” e “Risco” como textos contemporâneos. Contemporâneos do quê: de um estilo, de um período? Tomo aqui o contemporâneo a partir de suas dobras, de suas inflexões sobre o presente e seus passados. Apreendo estas escritas como narrativas que dobram cronologias, criam tempos descontinuados, oferecem novas imaginações para experiências passadas, encontram em antigas imagens forças moventes dos afetos, enfim, singularizam as relações com seu tempo. Nas leituras, descrever e narrar foram atos preocupados em acolher o espectador. E esse acolhimento foi um convite para experimentar esse mundo do “vir-a-ser”.

 

Carlos Mendonça é jornalista e professor-doutor da UFMG.

 

Fotos de Ethel Braga.

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