Quando a palavra (não) basta, por Gustavo Falabella

2

 

Prólogo

O papel de crítico é feito um par de sapatos novos. São bonitos, você chegou a namorá-los na vitrine, mas, nos pés, eles são desconfortáveis, pegam aqueles dois calos simétricos que você acumulou, ao longo da vida, nos dois calcanhares.

 

Eu conheço boa parte dessa gente que vai ao Espanca! acompanhar esse projeto, na primeira terça de cada mês. Alguns são amigos, vários companheiros, contemporâneos de teatro.

 

Eu conheço esse menino e essa menina que vão apresentar seus textos hoje à noite. Eles brincam e respeitam minha presença de “crítico” no local. Eu devolvo: “calma, nós somos amigos”. E penso ainda: “Mesmo que eu não goste de tudo que eu ouça e veja aqui hoje. A gente deve se tratar melhor, entender a riqueza de pensamentos e estéticas diferentes. Que assim seja, amém”

 

Sigo na minha “breve” apresentação .

“Eu já estou me alongando. Demais? Talvez”

Eu sou do teatro, me fiz ator, já dirigi uma peça e escrevo algumas coisas. Filho de dois artistas, convivo com a rotina do teatro, desde sempre. Sei o quanto ele é desafiador, catártico, difícil e sei o quanto ele pode ser bom quando é bom. Como costuma ser em outras edições do projeto em que estive presente.

 

Eu gosto do “Janela”, acho essa gente forte, bacana, contemporânea, arrojada e brava.

 

A palavra.

A palavra é matéria-prima do texto e é por isso que a ela é atribuída um papel tão importante nas leituras que acontecem no “Janela de Dramaturgia”. Na última terça-feira, a palavra recebeu tratamentos diferentes pelos dois autores e pelas respectivas leituras de seus textos.

 

Se em “A Menina de Lá”, de Raysner de Paula, a métrica e o desenho – quase lembrando a Poesia  Concreta dos irmãos Haroldo e Augusto Campos e também de Arnaldo Antunes – das palavras são pensados em detalhes, de maneira minuciosa; em “Risco”, de Luísa Bahia, a palavra surge em um jorro criativo da atriz, dramaturga, personagem, leitora (e todas as interseções possíveis) Dora em movimento de partida, de cima de um casco de uma tartaruga, encarando o mar.

 

Eu disse: – “A Avezinha”. De por diante, Ninhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…” E tinha respostas mais longas: – “Eeu? Tou fazendo saudade”

 

O mérito de Raysner é causar estranheza pelo lirismo (distante de uma fala comezinha, cotidiana) desse homem que fala de uma menina, um “Poço de Não”, e conta uma história que flerta com o belíssimo conto original de Guimarães Rosa, de quem o autor toma o nome e o mote de seu texto emprestados, se valendo, inclusive, de neologismos, o gosto pela palavra, marcas de toda a carreira de Rosa.

 

A Ninhinha de Rosa “vira” Helena e ela, numa manobra esperta para despistar a Morte (personagem com letra maiúscula), é escondida no coração da mãe e lá encontra um senhor que despencou, de súbito, no coração materno. A narrativa fantástica de Raysner também lembra o texto roseano, o realismo fantástico de Murilo Rubião e tantos outros autores.

 

Lembro-me de um professor que dizia que “Primeiras Estórias” (livro de onde vem “A Menina de Lá”) era uma espécie de manual de metafísica de Rosa e uma porta de entrada para sua complexa obra.

 

A narrativa entrecortada proposta em “A Menina de Lá”, no seu jogo de ir e vir, do tempo e espaço, é complexa. Às vezes, até demais – mesmo para um ator experiente como Eduardo Moreira, que, diga-se, dá um encanto especial ao lirismo de Raysner –, a ponto de correr o risco de perder seu fio narrativo nas inúmeras portas que vão se abrindo. O texto é um exercício mental estético também para quem o ouve.

 

Sempre me pego pensando, “e se esse texto fosse encenado?”. Daí, eu mesmo respondo com outra pergunta: “essa já não é uma encenação?” e me acalmo.

 

(**)

 

“Eu me organismo, é um problema genérico”

 

Já em “Risco”, a dramaturga Luísa propõe um desafio para a personagem Dora, que é lida (interpretada) pela mesma Luísa, aquela, a dramaturga. Ficou confuso? Talvez um pouco, mas seguindo a linha de “eu tô te explicando pra te confundir”, o texto dela promove uma sobreposição de narrativas que confunde quem ouve, confunde quem está em cena, confunde a personagem confusa.

 

Traço da narrativa contemporânea, a metalinguagem se apresenta quando o processo da escrita faz parte das quebras promovidas pelo texto e a atriz/personagem se dirige ao público para contabilizar sua trajetória em páginas lidas/escritas.

 

O texto de Bahia, por vezes, se perde em tantas palavras e há um risco de perder a ótima conexão que ela consegue estabelecer com suas tiradas engraçadas e metáforas bem elaboradas, durante boa parte de sua leitura. Por outro lado, esse movimento de partida, que está prestes, mas que nunca se inicia, permite à atriz criar um jogo com vários elementos, vozes de personagens, músicas cantadas, referências à música instrumental tocada por um potencial músico que a acompanharia e uma relação direta com o público.

 

A modo de encerrar.

Em ambos, o potencial de comunicação com a plateia é explorado. Os dois se preocupam com coisas que não estão escritas nas páginas e, sim, na relação com quem está ouvindo/vendo a leitura.

 

Os dois textos lidos têm outra coisa em comum: são para apenas um intérprete. O de Raysner parece poder ser lido/interpretado por outra pessoa, tanto que o foi por Eduardo Moreira. É impossível pensar em outra pessoa fazendo o texto de Luísa Bahia, que parece trazer inquietações dela própria para compor sua personagem e suas histórias.

 

Antes, no entanto, um epílogo

O “Janela” se impõe como uma realidade sui generis no cenário teatral da cidade: textos escritos para serem lidos, sem necessariamente ser encenados depois. Melhor: textos escritos para serem lidos nas terças-feiras de “Janela”.

 

Há uma interessante e nova geração de atores/dramaturgos, dramaturgos/atores.

O projeto dá um empurrãozinho para gente que escrevia e guardava seus textos no fundo de alguma gaveta. (Eu mesmo ando querendo revisitar as minhas). 

 

Mas para encerrar: voltemos à palavra.

Ela é a ferramenta que leva tanta gente ao Espanca!

Mas ela basta?

 

Os textos não são apenas lidos. Há toda uma mise-en-scène (o termo é ultrapassado, talvez, mas não encontrei outro) presente nas leituras. A própria ideia de leitura dramática ganha outra dimensão.

 

O que seria da palavra sem o manejo cuidadoso de um ator experiente feito Eduardo Moreira na leitura de “A Menina de Lá”? Ou sem a proliferação criativa de Luísa Bahia em “Em Risco”?

 

A palavra,

ela basta ou não basta?

 

Gustavo Falabella é jornalista e ator, integrante da Zap 18.

 

Fotos de Ethel Braga.

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized

Deixe um comentário