O dentro e o fora, ou duas doenças do tempo, por Victor Guimarães

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Antes de qualquer coisa, peço licença para circunscrever meu lugar de fala. É muito importante dizer que não sou um estudioso do teatro, nem mesmo me considero um espectador assíduo. Apesar de frequentar espetáculos sempre que posso, minha trajetória de pesquisa e meu ofício cotidiano dizem respeito ao cinema. Esse lugar me traz uma série de limitações: não domino o léxico do campo teatral, a historiografia me escapa, a maioria dos textos clássicos eu só conheço de nome. Desde já, minha aproximação aos textos e às leituras acontece sob o signo inevitável da precariedade.

Feito o alerta, no entanto, não gostaria que essas óbvias limitações se impusessem como um impedimento. Acredito muito no papel da crítica (não fiz dela minha vida por acaso) e mais ainda na liberdade de cada espectador (de qualquer arte, vindo de qualquer lugar) de estabelecer uma relação produtiva com uma obra. Por relação produtiva entendo um exercício necessariamente crítico, que se move entre a aproximação e o distanciamento, entre aquilo que uma obra me solicita (do pensamento, dos sentidos) e aquilo que eu posso devolver a ela (no meu caso, sob a forma da escrita). Além disso, e a despeito de todas as diferenças inevitáveis, cinema e teatro – artes da cena – compartilham muitos elementos, que me possibilitam estabelecer um terreno mínimo de diálogo.

Dito isso, resta ainda apontar uma última dificuldade: minha reflexão aqui se dá, um tanto inevitavelmente, na fronteira entre os textos (que li previamente) e as leituras presenciadas na noite da última terça-feira, junto do público da Janela de Dramaturgia. Diversas variações – sobretudo de tom – existem entre um momento e outro, entre a fixidez da tela do computador e o acontecimento movente que é uma leitura dramática – esse encontro fabuloso entre atores e espectadores, que faz do teatro essa arte tão fascinante (e insubstituível) da presença compartilhada.

Apesar de necessárias, as delongas até aqui foram muitas, e já é hora de ir aos textos/leituras. A despeito das inúmeras particularidades (sobre as quais falarei mais adiante), Vendaval e Clínica do Sono apresentam algumas características comuns: ambas são obras centradas em um pequeno conjunto de personagens e em um espaço interior mínimo, ambas dialogam (em alguma medida) com o Teatro do Absurdo, ambas postulam uma relação forte com o tempo e, principalmente, ambas se constroem em uma relação primordial entre o dentro e o fora.

 

Uma doença do passado

Em Vendaval, acompanhamos uma série de (des)encontros entre Marília e Laura, duas amigas de faculdade que conhecemos aos 80 anos (no decorrer da peça, elas terão ainda 70, 60, 50 e 17 anos). As duas personagens (interpretadas por duas atrizes veteranas do teatro mineiro na leitura) são bem construídas, com personalidades diametralmente opostas: Laura é uma mulher casada, que se orgulha de ter construído uma família, enquanto Marília é uma “velha safada” (em seus próprios termos), alucinada por dinheiro e aventuras. Boa parte do potencial cômico da obra (uma de suas virtudes mais evidentes no primeiro contato) se dá justamente nesse contraste, nos golpes sucessivos que essa contradição entre subjetividades produz.

Embora tenha uma verve cômica indiscutível – acentuada na leitura pela performance das atrizes e por toda a comicidade que uma leitura dramática naturalmente traz consigo (rubricas sendo lidas pelo diretor, eventuais imprevistos decorrentes do estudo ainda inicial do texto) –, a obra tem também um aspecto trágico bastante pronunciado: as personagens são solitárias, atravessadas pela falta (Laura enxerga “gente nos cantos, na gaveta, no tubo da pasta de dente”; Marília se define como “um fracasso”), e os momentos em que os diálogos tendem ao absurdo do desencontro trazem consigo um inevitável traço de melancolia:

MARÍLIA        Éramos vinte.
LAURA           Começar o quê?
MARÍLIA        O que a gente quiser.
LAURA           Qual seu nome mesmo?
MARÍLIA        Você desenhou essa tatuagem, lembra?

Se a coloquialidade dos diálogos, os cacoetes caricaturais das personagens (o eterno “Quem disse isso?” de Laura, a compulsão pela bebida e pelo dinheiro de Marília) e a velocidade das falas apontam para a comédia, há uma espécie de tragédia sub-reptícia, mais profunda, que dá forma às personagens. Mesmo na cena em que as duas se tornam prostitutas fracassadas (cujo traço cômico rendeu as gargalhadas mais intensas do público na leitura), um assombro trágico tinge de melancolia o erotismo. Lembro de uma passagem do célebre texto de Antonioni, publicado à época da estreia de L’Avventura:

“Nós não seríamos eróticos, ou seja, doentes de Eros, se Eros fosse uma boa saúde. E, dizendo boa saúde, quero dizer simples, adequada à medida e à condição do homem. Há então uma doença. E como acontece sempre quando há uma doença, o homem reage. Mas ele reage mal e fica infeliz por isso”.

Mas de onde vem essa doença que acomete as personagens e as transforma em mulheres dilaceradas, sempre pela metade, sempre a habitar um espaço exíguo, mas atormentadas por um fora da cena (a vontade de morar perto do mar de Marília, o tal acidente que teria dizimado a família de Laura, os obituários, os rapazes que ameaçam a vizinhança)?

Embora o texto mantenha (sabiamente) todos esses elementos sob suspeita (“tanto faz o que existe, o que não existe”, diz Marília, dramaturga por um instante), o fato é que elas sofrem no presente da encenação as consequências de um tempo passado, que foi sequestrado pela dramaturgia. Sua doença é uma doença do tempo, e o hiato entre os 50 e os 17 anos – ou seja, esse tempo a que não temos acesso – parece guardar toda uma intensidade perdida (“a gente tem mais passado que futuro”, diz Laura aos 70). A cronologia invertida e lacunar – a principal proposta dramatúrgica do texto, e que motivou boa parte das discussões durante o encontro – tem uma virtude primeira, que é essa de nos subtrair qualquer explicação e nos deixar a imaginar o que teria acontecido nesses 33 anos.

Na cena final, aos dezessete, embora haja ressonâncias daquilo que elas se tornariam no futuro (a vontade de casar versus a vontade de ser uma velha safada), há uma diferença radical: ao invés de se separarem por uma porta que insiste em fechar, elas finalmente se amam, olham o céu juntas, dão as mãos e dançam na chuva. Embora esbarre em certo clichê do final catártico – bastante prejudicado pela metáfora do dinheiro –, essa cena é fundamental para afirmar o hiato como potência. Ainda mais tendo em vista que todas as outras idades são um tanto homogêneas (há bem pouca modulação entre uma década e outra, o que talvez seja a fragilidade principal do texto).

Como ressalva ou dúvida principal, permanece a pergunta sobre como resolver – dramaturgicamente ou em termos de encenação – esse jogo entre o trágico e o cômico que o texto traz como potência inegável. O risco é o de pesar a mão no aspecto cômico e, com isso, eclipsar uma série de ambiguidades que o texto traz como uma de suas maiores virtudes. As risadas tendem a preencher o ar da sala e a instalar uma espectatorialidade própria, que não é fácil de contrariar no momento seguinte (por mais hábeis que sejam as atrizes). No caso de Vendaval, o riso (embora forte em si mesmo) ameaça com sua homogeneidade um texto que é pleno de matizes e de variações.

 

Uma doença do presente

Clínica do Sono partilha de uma tendência contemporânea, pós-kafkiana, de concentração do drama em um espaço institucional. À primeira leitura, me vieram à mente o tríptico de Richard Maxwell (“Burger King”, “Casa” e “O fim da realidade”, belamente encenadas pelo Club Noir de Roberto Alvim) e “Congresso Internacional do Medo”, do Espanca!. Em todas essas experiências, há uma investigação formal que repousa sobre os rituais próprios de uma instituição, com seu afã repetitivo e sua tendência reificante. A circunscrição ao espaço interno de uma instituição imaginária – com todo seu potencial alegórico – parece ser o lugar ideal para observar com acuidade o compasso da objetificação do humano no interior de um sistema que o excede e parece se movimentar sozinho ao redor. Novamente, há um dentro forte e de coesão claustrofóbica, mas que não cessa de se relacionar com um fora.

No prólogo há uma indicação importante: “Cada integrante do público tem ao seu dispor um pacote plástico com pequeno travesseiro e cobertor, recebidos na entrada do teatro”. Os rituais da instituição se estendem também aos espectadores: somos incluídos na diegese como visitantes ocasionais que esperam por uma palestra sobre a tal Clínica do Sono. De início, vemos dois personagens em cena. Sidnei observa um monitor que mostra pessoas dormindo, enquanto Suesse permanece entre o sono e a vigília, sentada em uma cadeira.

Já nas primeiras falas de Sidnei (um longo monólogo dirigido aos espectadores/candidatos a beneficiários da entidade), uma das virtudes do texto sobressai: há uma coloquialidade muito própria, uma fala veloz e repetitiva que dialoga com a oralidade mundana, com esse fenômeno típico da cidade contemporânea que é esse momento no qual alguém desconhecido, no ponto de ônibus ou na fila do pão, desata a falar sobre a própria vida sem que lhe perguntemos. Num tempo em que a autoestima é constantemente alardeada – exigida, vendida, imposta – como um valor supremo, falar de si para qualquer um tornou-se ao mesmo tempo um tipo de terapia grátis (“falar alivia”, diz Sidnei a certa altura) e um mero automatismo, um resultado óbvio de um sistema que inventou uma nova forma de opressão (a exigência absoluta da performance de si a todo momento). Sidnei é um personagem fabuloso: homem médio, modesto e de poucas ambições, cujas principais virtudes são a obediência e a gratidão.

Sidnei e Suesse trocam algumas palavras enquanto esperam pela chegada de uma senhora, funcionária da clínica. Quando ela chega, a habilidade de Daniel Toledo para construir caricaturas da vida contemporânea se confirma: Seidl também é uma personagem potente, ao mesmo tempo típica e singular, que sintetiza comicamente características da classe média atual: a reclamação sobre o trânsito, as preocupações superficiais com a bolsa e o desemprego, o gosto pela filantropia, a arrogância no trato com os empregados. Com dificuldades de enfrentar um passado obscuro de cárcere (ela chama a cadeia de “clínica”), a personagem também é uma falante contumaz (mas em uma chave oposta à de Sidnei).

O peso nos ombros de Seidl – visível pelos outros personagens, ao que tudo indica – é um desses elementos cênicos entre a alegoria e a concretude, que o Espanca! tem explorado tão bem desde os abacates de Por Elise (a fonte disso seriam as duas mãos e o sentimento do mundo de Drummond?). Embora seja um achado dramatúrgico notável, no entanto, esse elemento pede um desenvolvimento maior no texto e na encenação: seu espaço nos diálogos é pequeno (ele é esquecido a partir de certo momento) e o modo como ele será encenado ainda permanece obscuro (o que, por outro lado, pode ser um estímulo à criação dos possíveis encenadores).

No segundo ato, tem início o rito de apresentação da instituição. Seidl explica que a tal Clínica do Sono é uma entidade internacional “responsável por cuidar de pessoas cujos ciclos de sono se mostram inadequados aos padrões do sistema soberano”, tanto os que dormem demais quanto os que dormem de menos. Uma vez abrigadas, as pessoas podem trabalhar apenas nos intervalos entre uma hibernação e outra. “Mas existem regras que precisam ser seguidas”, é claro. Uma dessas regras, em particular, tem um rendimento cênico notável: Sidnei e Suesse são convidados a comer biscoitos oferecidos por Seidl, mas apenas os que não são recheados (no texto que recebi anteriormente, eles só podiam comer até o penúltimo, mas a alegoria acrescentada na versão efetivamente lida me parece melhor). Esse jogo entre a passagem dos biscoitos de mão em mão – no decorrer das falas – produz uma sensação constante de estranhamento, bastante produtiva.

Embora se apresente como um “caminho alternativo ao sistema soberano”, a instituição mais parece uma reprodução em miniatura de suas regras mais perversas. O texto inteiro é tomado por essa oscilação forte entre o dentro e o fora: a clínica do sono é que vemos no teatro ou é o sistema lá de fora? As alegorias se sucedem, em um jogo crítico ao mesmo tempo contundente e sutil de associações. O absurdo da clínica é o recalcado do sistema, que invade a cena nas ligações da operadora de telemarketing freelancer Samara (interpretada na leitura por um hilário Alexandre de Sena): ela pede dinheiro para o projeto Janelas de Bucareste (e depois de Varsóvia), destinado a instalar janelas em containers numerados que abrigam os habitantes que foram empurrados para a periferia na década de noventa, quando da renovação do centro histórico dessas cidades. Na clínica, há biscoitos grátis, mas só os não recheados. Lá fora, há projetos habitacionais em curso, mas eles consistem em instalar janelas em containers numerados.

A referência aos países do Leste Europeu – nas ligações de Samara, na construção da personagem de Suesse (descendente de poloneses), na trilha sonora – é outro achado notável: o sistema opressor atual não é uma oposição ao comunismo derrotado, mas a continuação de sua face mais nefasta em outros termos. Aos habitantes da sociedade de nossos dias (a Suesse, por exemplo), é reservada a liberdade fabulosa de um sistema onde se pode ser tudo, desde que o “tudo” esteja contido entre as profissões de operadora de telemarketing e de copeira. A certa altura, Sidnei dá um conselho a Suesse, referindo-se às crianças que ela traz consigo (e que não vemos): “Eu acho que os meninos podem ser muito felizes aqui. Vai ser bonito ver esses meninos crescerem por aqui, estudarem, começarem a trabalhar oito horas por dia, quem sabe doze, quem sabe até mais?” A singularidade da operação do texto consiste em instalar uma alegoria crítica potente em uma fala corriqueira e bem-humorada, daquele que é o mais “normal” dos personagens.

Essa sutileza admirável, contudo, se vê comprometida na revolta final de Suesse contra Seidl. Reagindo a mais uma reclamação absurda da senhora (“Eu gosto de ajudar, Sidnei, mas, às vezes, eu confesso aqui pra vocês, eu fico me sentindo um pouco explorada por esse sistema”), ela responde com um discurso: “Vocês mantêm todo mundo quieto pra vocês poderem viver como vivem. Dando pra eles, pra nós todos, o mínimo possível. E vão fazendo testes, pra saber quanto é que podem economizar com a gente, o quanto é que a gente aguenta, e por quanto tempo”. O que é problemático no discurso de Suesse não é a revolta em si (absolutamente necessária para o arco dramático da peça), mas o didatismo de sua forma. Quando a personagem reage à acusação do “papo-leste” feita por Seidl com uma frase como “O meu papo é da zona de fronteira, de um lugar onde o mundo já acabou e já começou de novo”, há uma encarnação súbita de uma intelectualidade contemporânea que é totalmente estranha à personagem. Num texto que é perfeitamente coerente na construção meticulosa e sutil de seus personagens, as falas finais de Suesse sobressaem como um implante dramatúrgico, como se um deus ex machina subitamente se encarnasse nela e viesse redimir a todos pela filosofia. O risco de um procedimento desses é o de produzir uma sensação de conforto no espectador, que sai da sala com a nítida certeza de ter sido redimido pela personagem. Um dos maiores desafios de uma arte crítica hoje consiste justamente em fazer da conclusão um lugar que não seja o do apagamento do conflito, mas o da encenação vital de uma contradição não superada.

A potência de Clínica do Sono consiste em diagnosticar com inteligência e acuidade uma outra doença do tempo – dessa vez, do presente – e em transformá-la em teatro de forma ao mesmo tempo leve e perturbadora, sutil e incisiva. Apesar de algumas escolhas que me parecem carecer de uma meditação mais demorada sobre o material (sobretudo o didatismo mencionado acima), trata-se de um texto muito instigante, que parece chegar mais longe – e mais fundo – do que vários de seus companheiros de geração.

 

 

Victor Guimarães. Graduado e Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico de cinema na revista Cinética e professor do curso de Cinema e Audiovisual do Centro Universitário UNA. Integrante das comissões de seleção do forumdoc.bh (desde 2012) e um dos coordenadores de programação do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2014). Foi curador das mostras Políticas do Cinema Moderno (2013) e Políticas do Cinema Contemporâneo (2014), do Cineclube Comum/SESC Palladium. Tem ensaios publicados em livros, catálogos de festivais e mostras retrospectivas (Hitchcock, De Palma, Rithy Panh, Jia Zhangke) e revistas como Doc Online (Portugal), Lumière (Espanha), Imagofagía (Argentina) e La Furia Umana (Itália).

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